quinta-feira, 11 de setembro de 2014

À sombra do carvalho

Depois da apanha das batatas, sob um céu fresco acinzentado, estendeu-se a toalha ao xadrez azul e branco no chão de erva fresca. Queijo de cabra, pão de centeio, sardinhas em molho de escabeche, pão de ló, polvo com salsa e cebola, pataniscas de bacalhau, panados de peru e chouriça assada. E claro, um garrafão de vinho tinto, produzido em casa. Depois da última batata recolhida –nenhuma se perde, pequena, cortada, grande ou verde… para assar, para consumir brevemente, para a sopa, para os animais… -, depois de carregado o trator, lavámos as mãos no ribeiro que corre ali ao lado. A roupa empoeirada, a cara suada, as unhas com terra… a barriga com fome. Sentei-me no chão e convidei a amiga de 8 anos a sentar-se ao meu lado. “Mas, ó Cátia, esta é comida de jantar ou de almoço!... Aqui come-se bacalhau à tarde?” “Ó menina, sabe que o trabalho duro da terra precisa de alimento!” “Você bebe vinho ao lanche?!”, continuou ela, chocada. Sim, Sarita, o vinho dá energia, aquece e consola. É companhia habitual destes amigos mais velhos e marca o ritmo da enxada na terra...

O senhor Tónio Careca- assim chamado desde sempre, mesmo no tempo em que tinha o cabelo todo- de bigode esbranquiçado, de copo tinto na mão esquerda e pão com sardinha na direita, sorri ao olhar para os frutos do nosso trabalho.

- Está contente, Sr. António?

- Foi uma boa dose, foi! E agora vai continuar…

- Vai para casa, descansar, a seguir?

- Ó menina, para casa?! Não…

- Ainda há-de ir às videiras hoje e depois à lenha!, interrompe a esposa, em tom assertivo.

- Está a ver, menina? Ela é que manda…

- E já não vais beber mais hoje, que te quero direito para o trabalho!

- Elas mandam em nós, menina, vê? Pronto, é só mais este copo… Mas sabe? Tem-me sempre o comerzito que eu gosto, pronto todos os dias…

- O que é uma coisa importante…

- É sim, trata de mim como eu preciso. Há 46 anos que trata de mim… Agora também já não vale a pena pensar em trocar…

- Olha que estás sempre a tempo! Mas quem é que te queria agora?!, pergunta a esposa brincando.

- Quem é que me queria? Uma moça nova qualquer!...

- Assim careca e acabado?!

- Eu é que não queria mais ninguém, estou muito bem assim! Sabe, menina, a patroa até pode refilar comigo e mandar-me trabalhar, mas eu gosto dela assim. Sempre gostei… Ainda me lembro de quando a vi a primeira vez. Estava com o pai dela… Eu fiquei à distância, claro!… Era nova e jeitosa… Agora já está velha, mas continua jeitosa. Eu lhe digo, menina, que não fiz mais escola além da quarta classe, não percebo assim muitas coisas, nem sei quem é que mais seria capaz de me aturar… Mas uma coisa eu sei: isto assim é que é bonito. Ter paciência para a nossa mulher e ela ter paciência para nós e querer-se bem… Isso é que é bonito.

E no meio dos ralhetes da esposa, que o mandava comer mais e falar menos, disfarçando com o seu tom de general a dificuldade em receber as declarações carinhosas do marido em público, este simpático senhor bebeu tranquilamente o seu quarto copo de vinho e voltou à sardinha. Ar sereno e feliz. Cheio. Dei por mim a desejar uma genuinidade assim. Como a simplicidade da mesa improvisada, como a pureza da água do ribeiro, como a dedicação da apanha das batatas, como a integridade daquelas mãos calejadas. Um amor assim. Incondicional e complementar. Que faz dos defeitos particularidades divertidas e das virtudes momentos de gratidão.

Regressei a casa cheia. Como o trator no fim do trabalho.

Aos homens de coração grande

Cumbarinho, 7/8/14

 

 

Laboratório de emoções


Pousos os sacos das compras pesados no chão da cozinha. Lavo as mãos com gel a cheirar a pêssego. Este fim de tarde, com o sol a deitar-se sobre o Caramulo, preguiçoso… Que lindo!... Um batalhão de andorinhas brinca em frente à janela da cozinha, saltando entre as duas velhas árvores do jardim em frente. Parece que há alguma a dar o sinal e voam todas!… Colocam-se depois direitinhas na árvore, como numa assembleia parlamentar, e voltam a levantar voo até à outra árvore… Livres.

Pego na beringela elegante e na tenra corgete, lavo-as. Deito-as sobre a tábua dos legumes. Corto, divertida, finas rodelas dos legumes partidos em dois, num ritmo acelerado, como fazem na televisão. E agora? Uhm… Alho francês, produzido em Portugal. Só compro produtos nacionais, por respeito às nossas mãos calejadas. Cortar de alto a baixo, separar as camadas e lavar bem- fica sempre terra escondida nas camadas mais profundas!
Deitado na tábua, é a vez do alho receber cócegas. E as anilhas- como lhe chama o pai- saltam para o tacho. É delicioso ouvir o barulho do azeite a ferver… Entretanto, limão lavado, partido em quatro, açúcar a gosto, água que baste e hortelã cortada na hora do jardim improvisado. Dois toques de Turbo, trrr, trrr, e temos limonada. O forno está a aquecer, a 180 graus. Acendo o fogão. Rego os legumes com azeite. Depois, brinco com os frascos de especiarias: ora bem, o que é que me apetece hoje?... Manjericão. Pimenta branca. Louro. Alecrim. O amarelo do açafrão sorri para mim. E o gengibre implora para que o deixe mergulhar também. Ah, o sal que devolve o sabor que os alimentos já têm ia sendo esquecido! Abro a garrafa de vinho branco, produzida em casa, e dou de beber aos legumes, que apreciam deliciados. Lume médio, cobre-se com o testo e deixa-se acontecer. Uau!, que cheirinho vem dali… A massa de água, azeite e farinha já levedou. Dou-lhe mais dois ou três apertões e faço uma bola com ela, sobre a banca coberta de farinha. Com o rolo de madeira estendo para cá e para lá, de forma a fazer um círculo de baixa espessura. Enquanto embalo a massa, acalmo a alma. E estico mais um bocadinho. E mais um bocadinho. Como aliás faço o dia inteiro. Para a esquerda, para baixo. Até ficar redondinha. Agora é como eu quiser. Ao contrário da vida que às vezes é como tem que ser. Liberto a vontade e pincelo com tomate, estendo o fiambre, as rodelas de cebola e as rodelas de pimento verde, fio de azeite, pitada de sal… E que mais? Abro o armário à procura de inspiração. A lata de azeitonas ri-se para mim. E as alcaparras salgadas. Saltam para a pizza também. E falta a mozarela salpicada por cima, que há-de fazer a crosta deliciosa que desfia quando se parte a fatia. Vou ao jardim buscar folhas de manjericão frescas, cujo perfume aspiro primeiro. E depois, forno com o petisco. Quinze minutos e está pronta! Entretanto, os legumes, que se querem al dente, estão prontos e desliga-se o lume. E agora? Bem, estão a acabar os iogurtes. Decido-me a fazer mais, neste milagre da multiplicação de iogurtes, em que um dá origem a oito, dos quais ficará um, para dar outros oito. Acho que ando sempre a comer um pouco do primeiro iogurte que utilizei… Esta transmissão de sabor, textura e poder de levedar intriga-me… Passado 13 horas de calorzinho, saem prontos iogurtes cremosos, milagrosamente…

E doce? Ah, já sei. Abro o frigorífico para deixar a imaginação criar. Tudo bem, tenho natas e mascarpone. Folhas de gelatina, primeiro água fria, depois água fervida. Gosto de observar este fenómeno, das folhas sólidas passarem a líquido e juntas com o doce em líquido passarem a sólido, depois de duas horas no frigorífico. Depois desse tempo, uma deliciosa panna cota está pronta. Do branco encorpado impressionante ao carmim do doce de amoras silvestres e morango feito na véspera que verto sobre a panna cota, do cheiro a manjericão fresco e a mozarela derretida ao delicioso sabor dos legumes, acompanhados da frescura da bebida, tudo na cozinha é música. É colorido. É perfumado. Uma experiência multissensorial, pode dizer-se. Alimenta o espírito ainda antes de chegar ao estomago. Olhos cheios, paladar deliciado, olfato inspirado. Alma apaziguada. A cozinha é sossego, é conforto, é mão maternal, é controlo, é estrutura, é criatividade, é cor, cheiro, sabor, textura, é companhia, é emoções, é relação. Cozinha-se primeiro com o coração e só depois com as mãos. O forno coze a massa depois de ter sido levedada nos nossos afetos e na nossa imaginação.

Depois da alma saciada, arrumo e limpo tudo no meu laboratório de emoções, digo adeus ao Caramulo, desço a persiana, encosto a porta… e vou para a varanda vermelha disfrutar do meu jantar.

Às fadas do lar que me despertaram o gosto de inventar

7/8/14

domingo, 27 de julho de 2014

Era uma vez uma casa


Era uma vez uma casa. Tinha paredes, tinha telhado. As paredes tinham várias janelas, de vários tamanhos, viradas para o sol nalguma hora do dia. Ao telhado podia-se chegar por dentro, através da claraboia do sótão, um espaço amplo, forrado de madeira que ainda cheirava a pinheiro. No resto da casa cheirava à lareira acesa da sala dos sofás, onde as pessoas ao fim do dia se aconchegavam em mantas e pantufas e conversavam. Cheirava a castanhas assadas no Outono, a rabanadas pelo Natal, a flores frescas na Páscoa e a rosmaninho pelo S. João. Tinha varandas onde pendiam floreiras verdes com petúnias e sardinheiras, vermelhas, amarelas e cor de laranja. Tinha uma entrada ampla, com uma grande porta amarela onde se chegava depois de um pequeno trajeto em ladrilho que atravessava a relva. Lá dentro havia muitas fotografias espalhadas por todas as paredes dos corredores, dos quartos, da sala dos sofás… Fotografias de muitos lugares, de muitas pessoas diferentes, com tons de pele diferentes, com cabelos e chapéus diferentes, com sorrisos diferentes mas parecidos… Crianças, velhinhos, adultos, famílias inteiras… Quem entrava naquela casa, ficava com a sensação de fazer uma viagem pelo mundo todo!... Aquela casa guardava muitas imagens bonitas, de muitas paisagens bonitas, que a maior parte das pessoas nunca verão pessoalmente, por não terem tido essa oportunidade ou essa coragem. E para além das imagens, das cores e dos cheiros bons, aquela casa tinha qualquer coisa mais, de maravilhoso, de precioso, que é difícil pôr por palavras… Não sei se era das gargalhadas que se ouviam ou do tagarelar de quem lá vivia, da roda viva do quotidiano ou do silêncio ao olhar para a lenha a queimar… Não sei… Mas sei que ali o espaço existia. Ali, o tempo existia. Havia passado, passados- muitas muitas memórias-, presente, presentes -uns mais inesperados do que outros-, futuro, futuros –muitos muitos sonhos-… Havia tempo e havia espaço. Havia pessoas com tempo e com espaço. Havia espaço para abraços, por exemplo, daqueles largos, envolventes, que parece que nos cobrem como cobertores… Espaço para passos de dança toscos e improvisados ao som da guitarra tosca que improvisava, acompanhada de uma voz brincalhona que improvisava. Espaço para corridas nos corredores, a pé, ao pé coxinho, às cavalitas… Espaço para fingir que se é o monstro das bolachas que vai comer quem não se esconder… Espaços em branco também, à espera de serem pintados por algum artista com inspiração de momento… Espaço para sentar no chão e ler até de madrugada… E havia tempo. Tempo para ouvir e chorar, tempo para falar e sonhar, tempo para se agarrar à barriga que doía de tanto rir, tempo para cozinhar com tempo, tempo para pensar, tempo para sentir, tempo para apreciar os cheiros, os sabores, os sons, as vidas que habitavam aquela casa. E havia ali um enorme respeito, veneração mesmo, pelo tempo que já passara. E um enorme entusiasmo, ganas mesmo, pelo tempo que havia de vir…   

Não sei se eram só o tempo e o espaço que existiam naquela casa que a tornavam tão cativante… Mas também não sei o que era… Talvez fossem as pessoas. As que lá moravam e aquelas que moravam nas que lá moravam… Estas então eram imensas!... Talvez por isso, aquela casa parecesse ser habitada por uma multidão! E apesar disso, as pessoas entendiam-se e eram todas bem-vindas. Sentiam-se bem ali. Sentiam que pertenciam a algum lado, a alguém. Sentiam-se herança umas das outras. Companheiras de caminho umas das outras. Sim, porque algumas demoravam-se pouco por lá, repousavam um pouco e seguiam viagem. De um certo modo, permaneciam ali, nas outras que lá ficavam. E acabavam sempre por regressar. Saudade. Muitas saudades. Atrevo-me a dizer que eram felizes, as pessoas que habitavam aquela casa. Ali também não faltava a mãe. E também não faltava o pai. Pode haver uma casa sem mãe? Sem pai?     

Era uma vez uma casa, que era um lar.
 
Às casas humanas que tenho aí espalhadas pelo Mundo
Lousã, 10/12/2013

A descoberta do Ré menor

‘Ti Anica, Ti’Anica, Ti’Anica do Loulé! A quem deixaria ela a caixinha do rapé…”

Já sei três acordes, que a minha irmã mais velha fez o frete de me ensinar, com a recomendação: “Agora tens de treinar e treinar até doer os dedos…. Com o Lá, Ré MI, já podes tocar muitas canções…”

Ah, percebi a mensagem... “Ó Laurindinha, vem à janela…” E aquela: “Parabéns a você…” “O mar enrola na areia…ninguém sabe o que ele diz…”

“Já cantavas outra, não?!”, grita do andar de baixo outra irmã.

Querer até queria, mas com o Lá Ré Mi pouco mais do que as canções populares posso tocar… Ah, queria tocar as “Dunas” mas, chega à parte dos “divãs” e canto sem viola porque não consigo fazer aquele som, aquele que encaixa ali bem. Parece que está a pedir um tom mais triste, não sei explicar, mas o ouvido pede outro som…

“Já te ensinei três, e esses já dão para tocar muitas coisas. Se quiseres tens ali o livro de acordes para veres outros.”

E lá fui eu à procura do Ré menor… Ora bem, primeiro dedo no primeiro traste, segundo dedo no segundo traste terceira corda… ai, que ginástica têm que fazer os dedos… mas alguém consegue lá chegar?! “Dunas, são como divãs… biombos indiscretos…” O que é que são biombos? Serão bombons?... “Dunas, são como…” Que som tão estranho, não devo estar a fazer bem, mas já não esticam mais, os dedos…

“Fecha a pooorta!”

E fecho a porta. “Dunas, são como divãs… biombos indis…" Ainda desafnado…

“Dunas, são como divãs… biombos…”

“Dunas, são como divãs…”

Tentativa, após tentativa, vou esticando os dedos já doridos e quando ia poisar a viola… “Dunas, são como divãs… biombos indiscretos!” E de repente, as cordas soltam-se!...

Ah, é isto, é este o som! Uau!...
Que bem que soa!
Então é isto um Ré menor!…

“Dunas, são como divãs… biombos indiscretos!” Ena, que som tão… certo!

Andei à procura deste som, tanto tempo, tanto tempo!… Faltava-me o Ré menor.

A canção estava incompleta, havia ali um vazio na melodia que a voz tentava cobrir, mas encontrei, ENCONTREI o Ré menor!!!

É mágico, é mágico: três dedos em dois trastos em três cordas na mão esquerda, cinco dedos na mão direita a trinar as cordas num ritmo veloz, e, plim!, o som solta-se, a alma acalma-se e a voz embalada faz coro com a guitarra… E, e agora posso cantar a alegria, mas também a tristeza, o entusiasmo, como a saudade, o encontro assim como a solidão, a raiva assim como a gratidão…

Encontrei o Ré menor, encontrei mais umas letras do alfabeto musical e pude aumentar o meu vocabulário… Já falo melhor, agora! E com a música posso dizer tudo, mesmo aquilo que as palavras não alcançam e os sons dizem tão bem…

Ele estava dentro do meu ouvido, eu ouvia-o por dentro, ainda antes de o conseguir ouvir nos meus dedos… Ah e soa tão bem! Aquece, conforta, preenche, surpreende, apazigua… Tenho um Ré menor dentro de mim e agora sei dizê-lo.

“Dunas, são como divãs… biombos indiscretos!”

Às minhas professoras caseiras de viola, aos meus amigos companheiros de palco
17/10/13


 

Ao Pedrinho


Querido “Pedrinho”,

Desculpa chamar-te por este nome. Bem sei que te arreliou muitas vezes, mas entende-o como uma linguagem só nossa, uma espécie de código… É com carinho que o emprego e até com alguma saudade… Não te zangues desta vez, não?
Lembras-te do dia em que tirámos esta fotografia? Meu Deus, que figuras!... Mas hoje invejo-te…
Pareces tão descontraída, tão genuinamente alegre, tão feliz!... E tudo porque nessa manhã, antes do pai sair para o trabalho, foi ao quarto das meninas dizer: “Querem ver o que está lá fora?”, com aquele ar maroto de quem traz alguma na manga… Levantámo-nos a correr, como para a escola não fazíamos, e puxámos velozmente a persiana…

Ena, tudo branco!...

Nunca tinha visto tanta neve junta! Habitualmente nevava todos os Invernos, mas não o suficiente para acumular no chão e brincar… Naquela manhã de semana, a neve tinha cerca de um metro ou mais (achava eu)! Já não voltámos para a cama, claro que não, o dia chamava por nós!
 “Ó pai, hoje há escola? Se está a nevar assim!...” “Pois, não sei, se calhar é melhor irem ver e se não houver voltam para casa, pronto…” “Oooh, bolas!…”
E lá fomos nós vestir os casacos de Inverno, as galochas e as luvas e corremos para a escola, ainda antes da hora prevista… Pelo aspeto demasiado parado, não parecia haver aulas.
Encontrámos lá a D. Helena, a auxiliar que nos dava o leite achocolatado a meio da manhã e vigiava o recreio, gordinha e com bigode, que andava sempre de xaile preto pelos ombros e perguntámos-lhe se havia aulas: “Ó meninas, não há não, eu vim aqui para avisar os meninos de que não há aulas, porque a D. Prazeres não conseguiu sair de casa, tem a estrada cortada.”
A D. Prazeres era a nossa professora. Santa senhora… Sempre imaginei que ela não se casou porque tinha que tomar conta de muitos filhos, que erámos nós e dávamos muito trabalho…
Bem, mas nesse dia, não tínhamos, portanto, de ficar ali. ‘Bora p’ra casa, que se está a perder a neve! Fiquei a pensar que provavelmente, no dia seguinte, a D. Prazeres nos ia pedir para fazer uma composição com o tema “Um dia com neve”, como sempre acontecia quando apareciam oportunidades originais de temas para composições.
Voltámos para casa, eu e as minhas irmãs, e passámos o resto da manhã na brincadeira… Recordas-te, Pedrinho? É engraçado, nunca tínhamos brincado na neve, mas deve ser como ir à praia pela primeira vez, toda a gente sabe como é que se faz e como é que se brinca na areia e no mar…
E nós, mesmo sem lições prévias, brincámos que nos fartámos… Fizemos batalhas de bolas de neve e contruímos 3 bonecos de neve, um para cada uma de nós, a que a minha irmã mais velha, que tirou as fotos desse dia, chamou “Tortugas”- porque a minha irmã Paula tinha um fato de treino das tartarugas Ninja-, “Chico Fininho”- o Pedrinho, por ser um palito- e Piolho elétrico- porque a minha irmã Carmen parecia ter pilhas, era impossível!... Pelo menos era o que dizia a minha mãe. Cada boneco levou um letreiro com os respetivos nomes, uma cenoura no nariz e o meu levou um cachecol, porque achei que ele devia ter muito frio, assim todo de neve… “És mesmo totó, achas que um boneco de neve tem frio?!” Mas nunca se sabe, nunca se sabe…

O que eu sei é que pela primeira vez na vida pudemos brincar com a neve, como quem vai à Serra da Estrela, só que é no nosso quintal… E o melhor de tudo é que não tivemos aulas!      

Ao fim da tarde desse dia, a neve já não dava para brincar, começava a derreter… E os nossos bonecos estavam mirradinhos… Ainda tentei guardar um bocado no congelador, mas fiquei com um bocado de gelo, não com neve.

Foi um dia em grande! Como um dia de festa. A minha mãe costumava dizer: “Vocês fazem a festa, deitam os foguetes e apanham as canas…” Lembro-me de só em crescida ter percebido o que é que esta frase queria dizer, mas se a minha mãe dizia tinha de ser verdade.

Hoje, à distância de 20 anos, fico feliz ao ver estampada no teu rosto essa alegria que a neve nos trouxe e a festa que nós fizemos com tão pouco… Profecia ou não, a verdade é que a minha primeira “vergonha pública” foi a recitar a “Balada da Neve”, 4 anos mais tarde, na festa de Natal da escola… “Batem leve, levemente, como quem chama por mim…”Ainda hoje a sei de cor e não há forma de memorizar o meu número de telefone!... 

Obrigada, Pedrinho, por estas memórias, por estas lembranças de que ainda consigo sentir o cheiro. E hoje, é em frente ao mesmo quintal que te escrevo… A paisagem mudou um pouco, sabes? O espaço onde ficaram os bonecos de neve tem agora uma cerejeira, um tanque e um poço… Mas mesmo sem neve, o cheiro é o mesmo… E cheira bem… Muito bem… Às lareiras acesas, à terra molhada, às castanhas assadas… Uumm!...

E sabes? Até nem te ficava nada mal esse corte de cabelo!...  Nem ele te impediu de tirares Muito Bom na composição “Viva a neve!”.

Posso pedir-te uma coisa? Não te afastes muito de mim, não? Se não complico-me!... E estou mesmo a precisar da tua alegre simplicidade…

 
À criança que vive em cada um de nós
Viseu, 6 de Novembro de 2013

sábado, 19 de julho de 2014

Casa

Lembrei-me agora, ou fizeram-me lembrar para ser exata, que há já muito tempo que não ponho em palavras escritas algum pensamento-andorinha. Como diz a parede do Largo Pintor Gata, que gostavas de te mostrar, “Sempre é tempo”. E aqui estou.

Ultimamente, moro numa casa de bonecas, com paredes de vidro. As que não são de vidro são vermelhas. Nunca está às escuras. De dia, o sol entra por quatro frentes e seca-me sempre a fruta em cima da bancada. De noite, a ausência de persianas, torna a lua convidada para a minha privacidade. Quando não há luar, mantêm o ambiente acolhedor os candeeiros da rua, creio que os do Paço Episcopal, cuja capela olha para a minha varanda. A outra varanda estende-se para o Caramulo e não me canso de lhe olhar a beleza. Com a luz tímida do sol nascente, no laranja da tarde quente, no tom violeta e azul do início da noite, há vários quadros e cada qual mais lindo que o outro. O Céu tem tantas cores!...

Outro pormenor que me delicia é o voo das andorinhas… De manhã acordo com a brincadeira delas e no fim da tarde, lá voltam elas!... Não sei o que fazem durante o dia, mas, e sem querer ser auto-referencial, diria que vão ali para o largo em frente à minha varanda quando eu estou em casa. E já as observei, demoradamente, tentando compreender o padrão da sua dança. Vêm às dezenas, são imensas, negras e pequeninas, ágeis. E voam sempre juntas, é impressionante!... Como se ensaia uma coreografia com tantos figurantes?...

Mas elas parecem saber os passos de cor. E não, não lhes encontrei um padrão. Andam para aqui e para ali, aos S, sem destino, para a esquerda e para baixo. Se lhes tivesse que pôr um adjetivo diria: divertidas. Sim, é isso. Não sei se estão a voar bem se não, mas parecem divertidas. Alegres, tontas. A disfrutar as cores do céu. E eu desconfio que vêm também para embelezar o quadro, à espera que eu queira tirar uma fotografia ao Caramulo e as apanhe.

São divertidas. Simples. Andam para ali a dançar de um lado para o outro. Sem propósito. Sem programa, sem horário. Ou então esse é o seu propósito, o seu horário. Não ter um.

Como fazem para conseguir voar naquelas inclinações?!... Desafiam a gravidade, deixam-me tonta, a mim que tenho algum medo das alturas e de tudo o que seja tirar os pés do chão!…

Divertidas. E com o olhar acompanho a dança delas e imagino-me andorinha… Para aqui e para ali. Livre e divertida. Feliz. A dançar. Como dizia o Marco, “dançar é chamar corpo ao pensamento”; fico a imaginar em que é que elas estarão a pensar... Às vezes, tenho pensamentos que postos em dança dariam uma coreografia espantosa, vibrante, transparente, enérgica!...

É muito bom dançar.

Ando agora a descobrir músculos no meu corpo… E articulações. E movimentos. Apesar de ter passado no exame de anatomia há muito tempo. A verdade é que só me perguntaram os músculos do antebraço… Mas a dança é outra coisa. É músculos mais música. É articulações mais ritmo. É movimentos mais liberdade. Exterior e interior. É conversar com o corpo todo. Num diálogo sôfrego, como todas as minhas conversas que parecem nunca acabar e desafiam a lei da relatividade do tempo que parece sempre muito curto. Novamente o Marco: dançar é “ir atrás do mar quando o mar vem atrás de nós”… Agora tu, agora eu… 1,2,3,4, e 1,2,3,4… Para a esquerda, para a direita, 1,2,3,4… Oh, mas lá estou eu a controlar!...

Esquece. Voa como quiseres, dança como quiseres… Conversa tudo, como quiseres. Tenho de aprender a dançar “free style”!... Porque é que o mais difícil é o fazer como me apetecer?

Constrange-me o improviso. A imprevisibilidade. O descontrolo. Desejo-o e temo. Como sempre acontece com o que se deseja.

A minha casa está construída sobre um penedo de granito. Coberto de musgo. Cada vez que estaciono o carro por baixo das trepadeiras bem cheirosas, cumprimento-o e acolhe-me sempre com um sorriso e um abraço. Tenho penedos a toda a volta da minha casa. Uma explosão de granito que me recorda a força que habita em mim! Em ti.

Refúgio, memória, saudade, reconstrução, pensamento, dança. Inabalável. Como o meu penedo ladeado de cheiros primaveris e amarelos. Saio de casa, desço as escadas e abro os dois portões com a chave que tem uma pequena mania. Com jeitinho, deixa-se levar. Saio feliz. Enquanto o portão automático abre, passo o batom nos lábios, arrumo o telemóvel, ligo o rádio com o CD e troco o cheirinho do carro. Um pensamento para o céu, com o pedido matinal- “Que eu seja boa hoje!”- e o portão acaba de abrir.

Ao regressar, novamente o meu penedo me abraça, envolvente e inabalável. Perfumado. Ainda hei-de subir a ele um dia! “O dia foi bom, sim, obrigada!” E subo, vagarosa, as escadas. Sem me esquecer de contrair o transverso. E abro as manias aos dois portões. E respiro novamente o doce sabor a casa. “Home is where the heart is”.

Abro as janelas para o ar circular. E enquanto bebo o meu batido com canela, acompanho a dança das andorinhas. 
Em casa.
 
19/07/14
À andorinha que com a sua dança me desafiou a voltar a dançar.    

 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Voltar a casa

O que eu não trocava por nada deste Mundo?...

O Pai. A Mãe. Os meus olhos azuis. O meu ursinho de peluche (não gozem, deram-me quando eu tinha 5 anos e viu-me crescer!...). A minha irmã. A minha camisola rosa. O meu Deus. A minha viola. O Harrinson (é uma piadinha, ãh?). Os meus amigos. O meu país.

 O que me faz chorar?

O Hino nacional. Um golo da selecção nas meias-finais do Europeu. Picar cebola. O discurso do Pai no dia do meu aniversário. Regressar a casa depois de um ano de Erasmus. A humilhação de um exame oral embrulhado. O “Orgulho e Preconceito”. As imagens do jornal da noite. A dor de barriga insuportável naqueles dias do mês. A notícia da morte do meu amigo. A declaração de amor esperada mas improvável. A saudade. Um Fado sentido. 

Coisas favoritas?

Cereais ao pequeno-almoço. Com canela. Vestidos. Pantufas. Festinhas no cabelo. Abraços. Dormir. Botas novas. Gelados. O toque dos sinos. O cheiro a castanhas assadas. Pão acabadinho de fazer com manteiga. A cor azul.

Uma casa tem de ter…

Lareira. Sofá. Mesa de jantar. Uma jarra de flores. Um armário dos doces. Tecto. Porta de entrada grande. Um rádio. Livros. Uma cama. Uma sanita. Uma viola. Um cão.

A última palavra que gostavas de pronunciar…

Missão cumprida. Fui feliz. Valeu a pena. É bom estar aqui. Desculpa. Obrigada. Muito obrigada.


"Não me lembro bem do que se passou. Sei que era noite. Daquelas noites frias de Inverno, de céu limpo, com cheiro a terra molhada da véspera, possível de sentir pelos jardins da cidade. Estava em Lisboa. Num desses bairrinhos que o tempo mudou as caras mas não a graça. Tinha o nariz vermelho e a pele arrepiada, apesar de estar embrulhada até aos olhos no meu cachecol comprado nos saldos da Baixa.
Não me lembro porque saí nessa noite. Talvez porque houvesse pouca gente em casa- o período de férias de Natal já começara para algumas- e me sentisse só. Precisava de ver pessoas. Gente viva. Movimento. Aconchego. Sim, eu sei que agora já sou grande. Isso é o que dizem. Os meus pais, os professores da faculdade logo na primeira aula o recordaram... Até a minha avó que me continua a chamar “piquena”, me disse antes de vir para Lisboa, que agora eu era uma mulherzinha e que tinha de fazer pela vida. Como é que se faz pela vida?
Passamos a infância e a adolescência a querer ser grandes, a querer independência e autonomia… Por vontade própria ou pela força das circunstâncias, um dia temos de deixar a nossa casa. Ah, e como custa!... Ainda para mais tem lareira. E a manta do sofá? E a prateleira superior do armário da sala onde a Mãe tenta guardar as bolachas e os chocolates para as visitas? Como custa deixar a mesa de jantar onde se joga monopólio ao serão!...
E com a nossa casa, fica para trás também a nossa terra, o sino da paróquia, os nossos amigos espalhados pelas faculdades do país inteiro, os jogos de futebol com a família inteira a torcer pela selecção, até dos discursos do Pai sobre o défice e o estado da Nação tenho saudades… Saudades? Oh… E a lagrimita apareceu no canto do olho, quando nessa noite, ao percorrer as ruas daquele bairrinho, ouvi uma canção que me soube mesmo a casa… Era a que costumávamos cantar na escola primária na Festa de Natal dos Pais…
Noite feliz, noite feliz cantava-se… mas eu confesso que me sentia um pouquinho triste Lisboa é linda, nem eu imaginava que esta cidade me iria dizer tanto antes de vir para cá, mas faz-me chorar…  Talvez seja do ar antigo e cansado das ruas de Alfama… Ou das aves raras que se cruzam comigo ao passar o Bairro Alto e me metem medo… Talvez a nostalgia do Castelo, que me recorda tempos áureos passados também tenha o seu peso. E os sem-abrigo a dormir nos passadiços do Terreiro do Paço, que me dão tanta pena… Ao lado, passa a senhora fina a correr, com as compras de Natal… Junto a Santa Apolónia, as eternas obras que nunca mais acabam desfeiam o lugar e complicam o trânsito, e com atenção, ouve-se uma voz fadista ao longe, triste… Não se vê muita gente de cara alegre por estas bandas, não… Tudo passa apressado, como se tivesse o último eléctrico para apanhar… Parece que as pessoas estão desencantadas, desiludidas, desconfiadas, que ninguém quer saber de nada ou de ninguém. Tudo com pressa. Tudo sem tempo. Para além de sem dinheiro, como dizem no telejornal, todos os dias. Deixei até de o ver, confesso, porque não me ajudava a levantar da cama no dia seguinte para ir para a faculdade. Era como se acordasse já vencida. E estas imagens, na minha terra nunca as tinha visto… As pessoas conversam mais, conhecem-se mais, preocupam-se mais umas com as outras… O espaço é mais pequeno, menos disperso e também há menos gente…
É nestas alturas, quando o que vejo à minha volta é triste, que as saudades de casa apertam mais. Porque o meu Pai poria tudo no lugar. Pelo menos lá em casa, não há persiana estragada ou torneira a pingar que ele não arranje. Qual é o Pai que não está a fazer o seu trabalho? Uhmm… Mas, bem, como agora já sou grande, dizem, tenho de resistir por mim mesma até às saudades. Vale-me a guitarra, que canta até o que eu não sei dizer.

O Mundo dos adultos é complicado. E não sei se algum dia vou entendê-lo. É preciso? Digam-me, é preciso? Emprego, greves, seguros, contratos, contas, trânsito, crimes, políticos, polícias, ordenados, oposição, défice, FMI’s e outras siglas que eu não sei para que servem. Obrigações e mais obrigações. O Mundo dos adultos que cresceram demais tem demasiadas palavras complicadas. Deve ser por isso que não cabem outras, de que eu gosto tanto e que me animam a jornada quando a encho com elas: pequeno-almoço sentada, vestidos, pantufas, abraços, segredos, azul, sorrisos, crianças, capuccino, canela, o cheiro das castanhas assadas, dançar, sonhar…

Eu não sei se tem de ser assim a vida. Conforme a pintam os grandes. Fazer-se à vida é ser triste?

E quando dei por mim, embrenhada nestes pensamentos, tinha apanhado o 45 e estava em Belém, à bordinha do paredão para sentir de perto o cheiro a rio… O Tejo é tão bonito!... Ao longe, o Cristo Rei que parece abraçar-nos e convidar-nos a entrar na festa… Porque é que a vida não pode ser uma festa?... 
Ao olhar o Padrão dos Descobrimentos, vieram-me à cabeça as aulas de História… Não me lembro nada do que disse ontem o professor na faculdade, mas da querida senhora que me ensinou que Portugal existe desde 1143, e que é por isso muito velhinho e que é por isso digno de todo o respeito que se deve aos anciãos, disso lembro-me. Confesso que não reconheço as 33 personagens que nele se erguem imponentes. Vejo o Infante à cabeça, vejo Camões, com a sua golinha inconfundível e os Lusíadas na mão, vejo Vasco da Gama, ainda reconheço a única dama presente, D. Filipa de Lencastre, e no meio de outros frades, S. Francisco Xavier. Os outros, com certeza importantes, mas a minha ignorância não dá para mais. Impressionantes estas vidas... E pensar que são do meu sangue. E que fizeram coisas tão grandes!... E que pasmam as minhas amigas dos 4 cantos do Mundo, do Congo, à China, passando por Espanha e pela Índia… Isto fomos nós. Fomos ou somos? Somos e não sabemos? Ou somos e esquecemos? O que é que nos aconteceu? Será que só nos Pastéis de Belém é que nós estamos de acordo em que são uma delícia? E por falar em amigas, nesse mesmo instante ouvi alguém chamar-me e, coincidência das coincidências, eram elas, as 4 estudantes estrangeiras que dão um ar internacional à Residência e não deixam que a casa sossegue com a sua euforia! Pediram-me que lhes mostrasse Belém e outros locais mais típicos de Lisboa… E eu fiz exactamente o caminho inverso, agora na alegre companhia da mistura de línguas a tentar parecer português. Revi com elas o Tejo, comemos pastéis de Belém, fomos aos Jerónimos onde um coro fantástico nos embalou...
Contei-lhes do que me lembrava da História de Portugal relacionado com os Descobrimentos e as personagens do Padrão e elas, cada vez mais maravilhadas com o nosso passado e com o nosso presente, fartaram-se de fazer perguntas… Voltámos à Baixa e logo ali, o perfume das castanhas assadas encheu-nos a alma “Quentes e boas, freguesa, 2 euros a dúzia!”. Dois euros por 12 castanhas? Realmente!... E lá em casa tantas no chão… Mas está bem, tome lá, que as minhas amigas nunca provaram…
Virando a esquina ouvimos imediatamente “Olha a sorte grande, lotaria do Natal!”… E o senhor de boné gasto, cortando o frio da noite com o seu pregão que convencia poucos, olhou para nós implorante, mas tive de lhe dizer: “Não temos dinheiro, desculpe…, Oh, disse eles, dizem todos o mesmo, este ano vai mal, vai…” Perguntaram-me depois as estrangeiras o que vendia aquele senhor, porque tinham reconhecido a palavra sorte. Lá lhes expliquei que não vendia sorte, não, se bem que dava jeito às vezes… 

Já na Rua Augusta, uma personagem inesperada meteu-se connosco, enquanto tirávamos uma fotografia. As minhas amigas, divertidíssimas, diziam que os portugueses são muito simpáticos e bem dispostos e logo me lembrei dos meus pensamentos tristes de há uns minutos atrás… E das saudades de casa… E do complicado Mundo dos adultos… E das notícias do telejornal… E do sem-abrigo do Terreiro do Paço… Perguntei-lhes se não tinham saudades de casa e dos países delas. “Saudade? O que é isso?” Expliquei como pude o que é saudade, disse-lhes que era uma espécie de nostalgia de regressar a casa, a casa com maiúscula, ao que é nosso, ao que reconhecemos como nossa identidade, nostalgia de regressar onde se pertence, um desejo imenso de plenitude de encontro com aqueles que nos amam de verdade, aqueles que não trocávamos por nada deste Mundo… Ficaram a olhar para mim com ar espantado e disseram com o seu sotaque especial: “Não, saudade não. Eu encontrei outra casa e outra família em Portugal, da qual tu fazes parte.” E com esta me calaram, e a lagrimita voltou-me aos olhos, pelo milagre que acabara de acontecer… s
Subimos até à Sé e eu ia completamente arrepiada… As ruas já não eram tão tristes, nem as pessoas tão apressadas, um encanto novo aparecia-me diante ao redescobrir o meu País através dos olhos destas amigas… O que eu não captei, captaram elas e fizeram-me entender que a nossa casa não fica num lugar só, que a nossa identidade está dentro de nós, que nós pertencemos àqueles a quem cativámos, independentemente da língua, idade ou condição… Mostraram-me que as lágrimas fazem parte do caminho de “fazer pela vida”, e que não são más, significam que somos humanos e que esta nossa humanidade, igual em toda a parte do Mundo, é boa e que eu não devia ter medo dela. Fizeram-me encher daquele bom orgulho de pertencer a um país de tanta História e de tantas coisas boas, com tantas potencialidades… E nessa altura da conversa, íamos nós a passar por Alfama, quando ouvimos na voz de uma velha fadista, aquela que poderia ser para muitos a última palavra que gostariam de pronunciar… A "Prece", de Amália...

A última palavra ainda não vai ser esta não. Porque me falta dizer… é bom estar em casa! É muito bom ir e voltar, chegar e partir e continuar em casa. Por isso, a todos que fazem parte da minha casa alargada, dirijo as últimas palavras: Vale a pena! Obrigada. Muito obrigada. E a todos… Feliz Natal!

A todas as alamitas e suas famílias