O que eu não trocava por nada deste Mundo?...

O Pai. A Mãe. Os meus olhos azuis. O meu ursinho de peluche (não gozem, deram-me quando eu tinha 5 anos e viu-me crescer!...). A minha irmã. A minha camisola rosa. O meu Deus. A minha viola. O Harrinson (é uma piadinha, ãh?). Os meus amigos. O meu país.
O que me faz chorar?
O Hino nacional. Um golo da selecção nas meias-finais do Europeu. Picar cebola. O discurso do Pai no dia do meu aniversário. Regressar a casa depois de um ano de Erasmus. A humilhação de um exame oral embrulhado. O “Orgulho e Preconceito”. As imagens do jornal da noite. A dor de barriga insuportável naqueles dias do mês. A notícia da morte do meu amigo. A declaração de amor esperada mas improvável. A saudade. Um Fado sentido.
Coisas favoritas?
Cereais ao pequeno-almoço. Com canela. Vestidos. Pantufas. Festinhas no cabelo. Abraços. Dormir. Botas novas. Gelados. O toque dos sinos. O cheiro a castanhas assadas. Pão acabadinho de fazer com manteiga. A cor azul.
Uma casa tem de ter…
Lareira. Sofá. Mesa de jantar. Uma jarra de flores. Um armário dos doces. Tecto. Porta de entrada grande. Um rádio. Livros. Uma cama. Uma sanita. Uma viola. Um cão.
A última palavra que gostavas de pronunciar…
Missão cumprida. Fui feliz. Valeu a pena. É bom estar aqui. Desculpa. Obrigada. Muito obrigada.
"Não me lembro bem do que se passou. Sei que era noite. Daquelas noites frias de Inverno, de céu limpo, com cheiro a terra molhada da véspera, possível de sentir pelos jardins da cidade. Estava em Lisboa. Num desses bairrinhos que o tempo mudou as caras mas não a graça. Tinha o nariz vermelho e a pele arrepiada, apesar de estar embrulhada até aos olhos no meu cachecol comprado nos saldos da Baixa.
Não me lembro porque saí nessa noite. Talvez porque houvesse pouca gente em casa- o período de férias de Natal já começara para algumas- e me sentisse só. Precisava de ver pessoas. Gente viva. Movimento. Aconchego. Sim, eu sei que agora já sou grande. Isso é o que dizem. Os meus pais, os professores da faculdade logo na primeira aula o recordaram... Até a minha avó que me continua a chamar “piquena”, me disse antes de vir para Lisboa, que agora eu era uma mulherzinha e que tinha de fazer pela vida. Como é que se faz pela vida?
Passamos a infância e a adolescência a querer ser grandes, a querer independência e autonomia… Por vontade própria ou pela força das circunstâncias, um dia temos de deixar a nossa casa. Ah, e como custa!... Ainda para mais tem lareira. E a manta do sofá? E a prateleira superior do armário da sala onde a Mãe tenta guardar as bolachas e os chocolates para as visitas? Como custa deixar a mesa de jantar onde se joga monopólio ao serão!...
E com a nossa casa, fica para trás também a nossa terra, o sino da paróquia, os nossos amigos espalhados pelas faculdades do país inteiro, os jogos de futebol com a família inteira a torcer pela selecção, até dos discursos do Pai sobre o défice e o estado da Nação tenho saudades… Saudades? Oh… E a lagrimita apareceu no canto do olho, quando nessa noite, ao percorrer as ruas daquele bairrinho, ouvi uma canção que me soube mesmo a casa… Era a que costumávamos cantar na escola primária na Festa de Natal dos Pais…
Noite feliz, noite feliz cantava-se… mas eu confesso que me sentia um pouquinho triste… Lisboa é linda, nem eu imaginava que esta cidade me iria dizer tanto antes de vir para cá, mas faz-me chorar… Talvez seja do ar antigo e cansado das ruas de Alfama… Ou das aves raras que se cruzam comigo ao passar o Bairro Alto e me metem medo… Talvez a nostalgia do Castelo, que me recorda tempos áureos passados também tenha o seu peso. E os sem-abrigo a dormir nos passadiços do Terreiro do Paço, que me dão tanta pena… Ao lado, passa a senhora fina a correr, com as compras de Natal… Junto a Santa Apolónia, as eternas obras que nunca mais acabam desfeiam o lugar e complicam o trânsito, e com atenção, ouve-se uma voz fadista ao longe, triste… Não se vê muita gente de cara alegre por estas bandas, não… Tudo passa apressado, como se tivesse o último eléctrico para apanhar… Parece que as pessoas estão desencantadas, desiludidas, desconfiadas, que ninguém quer saber de nada ou de ninguém. Tudo com pressa. Tudo sem tempo. Para além de sem dinheiro, como dizem no telejornal, todos os dias. Deixei até de o ver, confesso, porque não me ajudava a levantar da cama no dia seguinte para ir para a faculdade. Era como se acordasse já vencida. E estas imagens, na minha terra nunca as tinha visto… As pessoas conversam mais, conhecem-se mais, preocupam-se mais umas com as outras… O espaço é mais pequeno, menos disperso e também há menos gente…
É nestas alturas, quando o que vejo à minha volta é triste, que as saudades de casa apertam mais. Porque o meu Pai poria tudo no lugar. Pelo menos lá em casa, não há persiana estragada ou torneira a pingar que ele não arranje. Qual é o Pai que não está a fazer o seu trabalho? Uhmm… Mas, bem, como agora já sou grande, dizem, tenho de resistir por mim mesma até às saudades. Vale-me a guitarra, que canta até o que eu não sei dizer.
O Mundo dos adultos é complicado. E não sei se algum dia vou entendê-lo. É preciso? Digam-me, é preciso? Emprego, greves, seguros, contratos, contas, trânsito, crimes, políticos, polícias, ordenados, oposição, défice, FMI’s e outras siglas que eu não sei para que servem. Obrigações e mais obrigações. O Mundo dos adultos que cresceram demais tem demasiadas palavras complicadas. Deve ser por isso que não cabem outras, de que eu gosto tanto e que me animam a jornada quando a encho com elas: pequeno-almoço sentada, vestidos, pantufas, abraços, segredos, azul, sorrisos, crianças, capuccino, canela, o cheiro das castanhas assadas, dançar, sonhar…
Eu não sei se tem de ser assim a vida. Conforme a pintam os grandes. Fazer-se à vida é ser triste?
E quando dei por mim, embrenhada nestes pensamentos, tinha apanhado o 45 e estava em Belém, à bordinha do paredão para sentir de perto o cheiro a rio… O Tejo é tão bonito!... Ao longe, o Cristo Rei que parece abraçar-nos e convidar-nos a entrar na festa… Porque é que a vida não pode ser uma festa?...
Ao olhar o Padrão dos Descobrimentos, vieram-me à cabeça as aulas de História… Não me lembro nada do que disse ontem o professor na faculdade, mas da querida senhora que me ensinou que Portugal existe desde 1143, e que é por isso muito velhinho e que é por isso digno de todo o respeito que se deve aos anciãos, disso lembro-me. Confesso que não reconheço as 33 personagens que nele se erguem imponentes. Vejo o Infante à cabeça, vejo Camões, com a sua golinha inconfundível e os Lusíadas na mão, vejo Vasco da Gama, ainda reconheço a única dama presente, D. Filipa de Lencastre, e no meio de outros frades, S. Francisco Xavier. Os outros, com certeza importantes, mas a minha ignorância não dá para mais. Impressionantes estas vidas... E pensar que são do meu sangue. E que fizeram coisas tão grandes!... E que pasmam as minhas amigas dos 4 cantos do Mundo, do Congo, à China, passando por Espanha e pela Índia… Isto fomos nós. Fomos ou somos? Somos e não sabemos? Ou somos e esquecemos? O que é que nos aconteceu? Será que só nos Pastéis de Belém é que nós estamos de acordo em que são uma delícia? E por falar em amigas, nesse mesmo instante ouvi alguém chamar-me e, coincidência das coincidências, eram elas, as 4 estudantes estrangeiras que dão um ar internacional à Residência e não deixam que a casa sossegue com a sua euforia! Pediram-me que lhes mostrasse Belém e outros locais mais típicos de Lisboa… E eu fiz exactamente o caminho inverso, agora na alegre companhia da mistura de línguas a tentar parecer português. Revi com elas o Tejo, comemos pastéis de Belém, fomos aos Jerónimos onde um coro fantástico nos embalou...
Contei-lhes do que me lembrava da História de Portugal relacionado com os Descobrimentos e as personagens do Padrão e elas, cada vez mais maravilhadas com o nosso passado e com o nosso presente, fartaram-se de fazer perguntas… Voltámos à Baixa e logo ali, o perfume das castanhas assadas encheu-nos a alma “Quentes e boas, freguesa, 2 euros a dúzia!”. Dois euros por 12 castanhas? Realmente!... E lá em casa tantas no chão… Mas está bem, tome lá, que as minhas amigas nunca provaram…
Virando a esquina ouvimos imediatamente “Olha a sorte grande, lotaria do Natal!”… E o senhor de boné gasto, cortando o frio da noite com o seu pregão que convencia poucos, olhou para nós implorante, mas tive de lhe dizer: “Não temos dinheiro, desculpe…, Oh, disse eles, dizem todos o mesmo, este ano vai mal, vai…” Perguntaram-me depois as estrangeiras o que vendia aquele senhor, porque tinham reconhecido a palavra sorte. Lá lhes expliquei que não vendia sorte, não, se bem que dava jeito às vezes…
Já na Rua Augusta, uma personagem inesperada meteu-se connosco, enquanto tirávamos uma fotografia. As minhas amigas, divertidíssimas, diziam que os portugueses são muito simpáticos e bem dispostos e logo me lembrei dos meus pensamentos tristes de há uns minutos atrás… E das saudades de casa… E do complicado Mundo dos adultos… E das notícias do telejornal… E do sem-abrigo do Terreiro do Paço… Perguntei-lhes se não tinham saudades de casa e dos países delas. “Saudade? O que é isso?” Expliquei como pude o que é saudade, disse-lhes que era uma espécie de nostalgia de regressar a casa, a casa com maiúscula, ao que é nosso, ao que reconhecemos como nossa identidade, nostalgia de regressar onde se pertence, um desejo imenso de plenitude de encontro com aqueles que nos amam de verdade, aqueles que não trocávamos por nada deste Mundo… Ficaram a olhar para mim com ar espantado e disseram com o seu sotaque especial: “Não, saudade não. Eu encontrei outra casa e outra família em Portugal, da qual tu fazes parte.” E com esta me calaram, e a lagrimita voltou-me aos olhos, pelo milagre que acabara de acontecer… s”
Subimos até à Sé e eu ia completamente arrepiada… As ruas já não eram tão tristes, nem as pessoas tão apressadas, um encanto novo aparecia-me diante ao redescobrir o meu País através dos olhos destas amigas… O que eu não captei, captaram elas e fizeram-me entender que a nossa casa não fica num lugar só, que a nossa identidade está dentro de nós, que nós pertencemos àqueles a quem cativámos, independentemente da língua, idade ou condição… Mostraram-me que as lágrimas fazem parte do caminho de “fazer pela vida”, e que não são más, significam que somos humanos e que esta nossa humanidade, igual em toda a parte do Mundo, é boa e que eu não devia ter medo dela. Fizeram-me encher daquele bom orgulho de pertencer a um país de tanta História e de tantas coisas boas, com tantas potencialidades… E nessa altura da conversa, íamos nós a passar por Alfama, quando ouvimos na voz de uma velha fadista, aquela que poderia ser para muitos a última palavra que gostariam de pronunciar… A "Prece", de Amália...
A última palavra ainda não vai ser esta não. Porque me falta dizer… é bom estar em casa! É muito bom ir e voltar, chegar e partir e continuar em casa. Por isso, a todos que fazem parte da minha casa alargada, dirijo as últimas palavras: Vale a pena! Obrigada. Muito obrigada. E a todos… Feliz Natal!
A todas as alamitas e suas famílias