sexta-feira, 16 de outubro de 2009

A cachupa da vida




Ao som de um colchão a encher com a força do pé, de 2 chinesas a falar um língua estranha, ao lado de 2 ou 3 grupinhos de voluntárias a ler, de muitas gargalhadas e conversas ao fundo dos contentores, no meio de garrafas Luso vazias que jazem pelo chão na espuma dos banhos improvisados, sob um Céu de nuvens que nunca chovem, sob uma Lua que é o único candeeiro da rua cheia de sal e lama e cheiro a "katinga"... às 23h desta ilha da Boavista, com os calções arregaçados enquanto o creme das melgas seca e com os cabelos molhados pela água bendita do chuveiro que só existe para nós e para o Hotel Rio e não para o resto da ilha, com a barriguinha cheia de esparguete depois de um dia de trabalho a aliviar os corpinhos chupados da fome que vi todo o dia... Aqui estou.

O coração chora e os olhos também. Hoje percebi o que é dar de comer com os meus cinco pães. Até já os dois peixes começam a escassear e só nos sobram as mãos e as palavras para consolar um povo que tem pílula de graça, mas come uma vez por dia.

Estes são meus irmãos de voo também.

Nós não chegamos a nada. Não valemos nada. A nossa sede é a mesma, a nossa fome a mesma, os nossos sofrimentos, a nossa falta de forças e a nossa indignação é a mesma. Quanta solidão, quanto abandono... Quanta indignidade se oferece a esta gente!... E quereria trocar de lugar com a moça que tem um tiróide de livro e com o menino cujo brinquedo é um maço de cigarros usado com duas pilhas ferrugentas dentro... E com o jovem que quereria estudar direito internacional... E com o jogador de futebol lesionado...

Devolver esperança a quem foi roubado. Na comida também, no salário justo também. Mas essencialmente roubado na esperança. Na dignidade. E ao olhar para ti, que te pões a jeito para que te abracem sem medo de sujar a bata, eles reconhecem a sua humanidade, que já tinham esquecido. E curiosamente é aí que tu também vais desencantar a tua. E ensinam-se mutuamente o que é sonhar e reconhecem aí um mesmo horizonte que querem acreditar estar a ver lá ao fundo... Está ali, não vês? Vamos elevar-nos mais uns metrozitos neste céu de cristal e vais ver como está mesmo ali o sonho que viste quando finalmente conseguiste fechar os olhos no teu metro quadrado de casa, a cheirar a porcaria, só porque alguém se esqueceu que era teu companheiro de voo.

Obrigada por me teres deixado entrar na tua vida.

Obrigada pela cachupa da vida, onde depois de misturares a solidão, o sofrimento, a angústia, a esperança, a simplicidade, a fé, a alegria e a humildade, e ao som de uma coladeira que quiseste dançar comigo, me teres oferecido do mesmo prato onde tu comes. Sem precisar de talheres.


E como já falei de mais, vou deixar que a tua voz se faça ouvir também. Não encontrei melhor fotografia para Cabo Verde do que aquela que um dos teus filhos te tirou. E eu, de lagrimita no olho, vou relê-la e cantar "sodade, sodade...!"



7 de Agosto de 2009
Ao Ovani, ao Cesário, ao Igualdino e aos seus irmãos todos
Às voluntárias que voaram comigo

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