domingo, 4 de outubro de 2009

O pão da aldeia



O forno aquece a cozinha onde o pão finta na maceira. Ao longe a voz destes montes onde a vida é dura e o grito do galo pela manhã. Oiço a voz da pequenita que mora ao lado que chama por aquele a quem muitas vezes o vinho impede de ser mais pai. E vejo a velha vizinha que se aproxima, mulher rija, que ousa dizer ao Sr Dr. que o melhor medicamento que lhe pode dar é uma enxada na mão. Essa mão que tanta terra já trabalhou para levar para a frente a família de quem ficou a ser o homem da casa depois que o marido morreu num acidente de trabalho. Os filhos eram pequenos demais para se lembrarem, mas as mãos calejadas sabem bem o que custou mostrar à tristeza que não ia levar a melhor. E chega, passado um pouco, a vizinha da frente, com uma mão cheia de couves “porque sei que agora não têm cá e estavam para fazer a sopa”… E sobre a mesa pintalgada de farinha deposita-as. Deram mais tarde um caldo delicioso, com sabor a humildade (de dar e de receber). Vem o tio Manuel depois, devolver o caldeiro onde tinha levado as batatas para semear que lhe emprestáramos. Olhar cansado, muito cansado, de quem não dorme bem desde que um AVC empurrou para a cama a esposa. Agora ele é mãe e irmão e marido e tudo. Vejo-o mais tarde estender a roupa. Mais tarde ainda passar com um fardo de erva para os coelhos à cabeça. Mais tarde ainda, sair com a enxada na mão. Mais tarde ainda, entrando em sua casa, vejo-o atrás da esposa em cadeira de rodas a servir-lhe o jantar. A esposa já não se lembra de muita coisa. Mas não se esquece das suas 1001 doenças que deve relembrar a toda a hora ao marido e ao filho, que deixou o emprego na Alemanha para vir cuidar dos pais, agora que a família sofreu tal revolução. Há menos de meio ano que a esposa o trocou por outro e saiu de casa. O tio Manuel nunca se queixa. E encontra sempre forma de desculpar a mulher. Mesmo quando para todos os que os visitam ela transpira egocentrismo e indelicadeza. Nunca está bem feito o jantar. Nunca está boa a temperatura do quarto. Sempre estão demasiado pesados os cobertores na cama. Sempre tem alguma dor. E Deus esqueceu-se dela. E assim, passa os dias a desfilar queixas e a exigir o que ninguém lhe pode dar: a serenidade de quem está em paz consigo e com a vida. E o Sr. Manuel vive um dia atrás do outro, qual pai amoroso, não apenas aceitando resignado um fado que alguém escreveu por ele, mas abraçando-o, honrando um sim dito algures há mais de 40 anos. Não exige nada, não pergunta nada. Não pretende perceber. A única coisa que percebe é que houve lá qualquer artéria que entupiu na cabeça da esposa e que a impede de mexer metade do corpo. E por isso, agora ela precisa totalmente dele. Agora. Agora isto. Amanhã não importa. E com o ontem, não se faz vida.
Mais tarde falo com a velha tia, viúva há tantos anos quantos os de casamento do tio Manuel. Dois anos depois do enlace o marido morria. E desde então viveu sempre para as 3 irmãs, para os sobrinhos, para os sobrinhos netos, para os vizinhos, para quem lhe batesse à porta. Ah, que ousadia esta de enfrentar a solidão de cabeça erguida… como se os olhos enxergassem lá ao fundo qualquer coisa que mais ninguém vê… como se por essa luz que se vislumbra no horizonte (e que mais ninguém vislumbra) continuasse a fazer sentido existir e levantar-se cada manhã para agradecer à vida mais este dia. “Ó tia, porque é que não voltou a casar?” “Ó menina, não calhou!...” Porque o coração tem razões que os vizinhos não podem entender. Nem os da tia, nem os do tio Manuel. Nem os da vizinha da frente. Nem os da pequenita do lado.
O perfume desta aldeia hoje é de pão. Daquele pão que outros compram embrulhado em sacos de plástico com etiqueta na prateleira de um hipermercado qualquer. Que não cheira, que não tem sabor. Este sabe a mãos gretadas de trabalho duro, a pele morena do sol escaldante no pico do Verão, sabe à vida pobre que chega sempre para o vizinho, sabe a pouco porque não chega para mais. Talvez eles (que o fazem) não saibam mas… sabe a tudo. É a vida entregue por amor que é ali amassada. É a oblação da existência de cada um que finta na maceira. E é depois a plenitude da humanidade que vai ao forno. No final? É o pão saboroso que dá sentido a tudo o resto. Sabe a amor genuíno polvilhado com saudade. E regresso a casa saciada. Aqui pertenço.

Às mulheres rijas como a minha Mãe que tornam a nossa vida mais saborosa
Guimarães aldeia, 21 de Fevereiro de 2009

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