Querido maninho:
Quando te vi, senti-me ridícula.
Quando te vi, senti-me ridícula.
Eu, já grande, senhora de mim, convencida de saber muitas coisas, de estar mais autónoma nestes primeiros passos do mundo que chamam dos adultos, que dediquei tantas horas e tantos cotovelos a tentar perceber porque é que a glicose devia entrar por um portãozinho na membrana dianteira das células que fazem fila da frente no intestino para chegar ao nosso sangue, para depois ser levada até às outras células irmãs espalhadas pelos 4 cantos do corpo para entrar depois numa dança em roda a que gostam de chamar ciclo de Krebs, para depois dar uma moléculazita com um nome muito estranho, dizem-na adenosina trifosfato, para depois essas mesmas células a poderem utilizar para fazerem o seu trabalhinho de células: multiplicar-se, crescer, morrer (porque também para morrerem precisam de energia), produzirem proteínas e outras primas, etc, etc, etc… Muitas horas, mesmo… E esta não é senão a lei mais básica do funcionamento de qualquer ser vivo… Se soubesses, maninho, a quantidade de outras leis e danças que se passam dentro de nós, passavas-te, como eu me passei muitas vezes, mas por ter de as decorar…
Mas, dizia eu, que ao ver-te senti-me ridícula. Por me ter passado alguma vez pela cabeça que sabia alguma coisa, que conhecia alguma coisa.
Enquanto se escrevem livros de texto imensos em imensas línguas, enquanto se publicam mais de 1000 artigos por dia, enquanto os políticos nos parlamentos decidem as nossas vidas, enquanto se fazem belos discursos pelo mundo fora e se fazem negócios de milhões, enquanto se inventam máquinas extraordinárias e se canta e dança e bebe e grita, tu estás aqui, maninho, à minha frente, a contar-me a tua história, que se calhar nunca vai fazer história. Ainda nem te deram o nome oficial, que é António, e já marcaste a minha vida, vês? Obrigada pela bofetada que hoje me deste. E ao contrário de mim, sem necessidade de muitas palavras. Estavas ali, sozinho, com as tuas 1200 gramas, pouco mais de um pacote de arroz… Mas com essas gramas, com essas tuas célulazinhas em harmoniosa orquestra a trabalhar para a tua canção, lutas! E lutas com as energias que o teu corpinho de um palmo te permite. É o que tens. E enquanto choro até às entranhas pelo esforço que pões em respirar e em manter o coração a bater, vou pensando que sou mesmo ridícula. Por achar a vida tão complicada às vezes. Por me debater tão pouco por ela. Por querer que outros vivam por mim. Por me esquecer que cada um de nós é um mistério imenso que não vale a pena querer abarcar. Por pensar tantas vezes que já chega, que é desta que baixo os braços… E como que para me dizer que não posso fazê-lo, dás agora um pontapé, porque não apenas os braços, dizes, mas também as pernas tenho de manter no ar.
Ó maninho, desculpa esta tua irmã grande. Tu sim, és grande! Que guerreiro, ãh? Vens dizer aos senhores engravatados, esses que escrevem os livros, e aos que discursam, que eles não sabem tudo e que não são eles que decidem aquilo de que tu és capaz! Pelas suas contas não devias propriamente estar aqui. Mas ou eles não percebem nada de matemática ou… ou não sei. Não quero já saber. Não sei nada. Sei que te vi lutar, hoje, como nunca tinha visto ninguém e me senti ridícula por andar esquecida do que é ser Homem.
Prometo-te que vou dizer isto à nossa família.
Até já
Um grande abraço, que ainda não podes receber
Tua Cátia
16 de Outubro de 2009
Aos meus irmãos pequeninos em qualquer coisa
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